terça-feira, 10 de junho de 2014

A higienização da cidade

Começo do século XX, década de 1900. Rio de Janeiro. O prefeito Pereira Passos inicia um processo de limpeza urbanística. Derruba todas as pensões, os cortiços, as vilas de moradores pobres do Centro da cidade para abrir espaço para novas avenidas. Sem ter para onde morar, e sem qualquer preocupação da Prefeitura sobre que fim teriam essas pessoas, elas vão para os morros.

100 anos depois, quando a gente pensa que o mundo estaria mais evoluído, mais civilizado, em São Paulo, Porto Alegre e demais cidades do país acontecem vários "acidentes" em diversas comunidades pobres, causando grandes incêndios, que as tira do mapa. De novo o Estado não se preocupando com as pessoas. Coincidentemente, é período de Copa do Mundo.

Em Florianópolis não haverá nenhum jogo da Copa. Nenhuma casa está sendo demolida, nenhuma comunidade está sendo devastada. Quer dizer... bem... Mas a cidade está passando por um processo semelhante. E o Centro da cidade está mudando.

Há muitos anos que os comerciantes pedem que a Prefeitura dê mais assistência para o lado pobre do Centro. Do lado de cá da Praça XV. Do lado dos Correios. Do lado da Rua João Pinto. Do lado da tendinha do Seu Cláudio. Do lado da Escola Estadual Antonieta de Barros. Do lado da Rua Tiradentes. Do lado do Hotel Royal. Do lado do Bar do Milton. Do lado da Travessa Ratclif. Do lado do Bar do Noel.

Alguns desses lugares já não existem mais. A tendinha do Seu Cláudio, que funcionou por uns 30 anos. A Escola Antonieta de Barros, que fechou as portas há uns 10 anos. O Hotel Royal, que agora é um prédio comercial. O Bar do Noel, que já não é mais o Bar do Noel, mas o Bar do Vinícius de Moraes. Moraes e bons costumes.

A Travessa, e arredores, sempre foi um lugar underground. E o que significa underground? Traduzindo literalmente do inglês, um degrau abaixo. Um nível abaixo. Submundo. A região era um local de comunistas, mendigos, vereadores, secretários, jornalistas, bêbados, adolescentes ávidos para mudar o mundo, etc. Sempre vivendo em harmonia.

Mesmo frequentada por pessoas da pior espécie, a escória da nossa sociedade imbecil, malandro não se criava na Travessa. Ela tinha figuras emblemáticas que cuidavam dela: Seu Amilton e o Sandrão, por exemplo. Talvez por serem, eles mesmos, parte dessa escória da nossa sociedade imbecil. Hoje, infelizmente, eles já não mais trabalham lá.

O que acontece agora é uma higienização da Travessa. A cerveja que era vendida a preços populares de R$ 5, R$ 6, agora é vendida a R$ 9. Com os 10% chega a R$ 9,90. Logo, arredonda-se pra R$ 10. E nem é litrão.

A Travessa sofre com um mal que assola vários locais do país: o efeito Veja. Um bar ganha o título de melhor bar do ano da revista e passa a ser frequentado por toda uma classe média. Um degrau acima. Um nível acima. O mundo. Pseudo-comunistas, cocainômanos, universitários, trabalhadores de escritório com ar condicionado.

Pra ajudar a piorar a situação, moradores de rua que moravam ali, na Travessa, João Pinto, Vitor Meirelles, Nunes Machado, na rua, estão sendo "convidados a se retirar" da região. Um deles, com uma barba grande, já foi encaminhado para sua cidade de origem, Porto Alegre. Meio contra a sua vontade, mas se ele saiu das ruas de Floripa é o que importa, né?

Trabalho muito bem realizado a partir de uma força tarefa da Polícia Militar e Prefeitura Municipal de Florianópolis. Só falta remover agora os outros cerca de 500 moradores de rua. Dispostos, PM e PMF?

E o que faz uma pessoa morar na rua? Falta de oportunidade de trabalho, falta de lugar pra morar, brigas com a família, drogas. São cerca de 500 motivos. Mas a solução é uma só: "convidar a se retirar" da rua e encaminhar pra sua cidade de origem. Pra que se importar? Pra que tentar resolver seus problemas? São só moradores de rua. Eles que procurem resolver os seus problemas sozinhos. Fora das ruas. Em casa. E pouco importa se essa casa tem estrutura. Se a família tem condições. Isso é problema deles.

Conheci alguns moradores de rua. Alguns bilíngues, outros com ensino superior completo. Músicos, atores, e demais profissões. Quem diria.

Florianópolis não está devastando comunidades? É uma questão de ponto de vista. Os moradores de rua estão sendo dizimados. O Centro da cidade está sendo devastado, descaracterizado. O Centro precisa de moradores de rua? Não. Mas eles precisam ser tratados, e não simplesmente tirados forçadamente das ruas.

A Prefeitura quer “limpar” o Centro, mas não se preocupa, por exemplo, em arrumar o sistema de esgoto, que mensalmente cisma em querer subir para as calçadas, trazendo à tona, literalmente, a merda toda. É a resistência do underground! Do submundo! E quando tem samba na Travessa, ela lembra a Lapa. Que bonito! Só que o Rio e a Lapa, principalmente, fedem a urina.

Na região, sintetizando tudo isso, tem um espaço que tem um trabalho de quase 20 anos com prostitutas, usuários de drogas, pessoas com problemas de saúde mental, presidiários. Aquela escória da nossa sociedade imbecil. Além disso, o espaço se preocupa, também, há anos, com a parte cultural. Esse ano de 2014 são 8 oficinas sendo oferecidas gratuitamente: dança afro, samba, violão, coral, capoeira, figurino, informática e percussão. Só que isso tudo está perigando acabar porque sofreram uma ação de despejo de uma universidade pública.


E assim, o Centro da cidade – que tem uma história de cultura para os pobres, mendigos, moradores de rua, feito muitas vezes por eles próprios, que todo mundo acha bonito quando vê na TV, mas que ninguém quer por perto – agora vira as costas para a escória da nossa sociedade imbecil, renega seu passado, e passa a fornecer “cultura” para membros da nossa classe média, que entopem o nariz de cocaína, mas são da classe média, aí pode.

Um comentário:

Tatiane Fuggi disse...

Caro Jornalista Visceral da Travessa
Venho por meio deste, dizer que a Travessa ainda é o avesso, underground em suas palavras. Através de uma cultura singular, a Travessa fala. Falou durante anos através das minorias, dos bêbados, dos sambistas, dos michês e garotas de programa, dos poetas, dos loucos, dos psicanalistas, anarquistas, comunistas... E não tem nada hoje na Travessa que seja pseudo. É que o Sr. não entende que virou moda ir aos pobres? Na Rocinha tem casa noturna pra playboy. Ficou chique fazer tour na favela. Ficou vip tirar foto com morador de rua cagado e postar no facebook. Ficou "moderno" frequentar o submundo de Florianópolis. Malandro se cria sim na Travessa, no Bar do Noel. Ele ainda vem pisando na ponta dos pés. Anda feliz por ai, terno branco, sorriso largo. Vez em quando encosta em um ou outro e faz a festa.
Mas acalme seu coração. Não se higieniza o samba, os olhares, a alegria, as amizades em volta de um lugar. Logo mais, na Hercílio Luz, garotos voltam a procurar dinheiro, diversão e as senhoras de bons costumes da sociedade. Mais além, as meninas, nem tão escondidas vão refletir suas esperanças em luzes vermelhas no centro da cidade. E nós? Nós continuamos a batucar por aí...