terça-feira, 16 de março de 2021

A periferia e a religião

A periferia é o lugar mais democrático do mundo. Até rico é bem vindo.

Só na periferia um umbandista pode conviver ao lado de uma evangélica.

E no último domingo passei a manhã ouvindo Ludmila de um lado e uma outra mulher gritando de outro. Pensei ser outro funk. Até que dei uma esticada no pescoço e entendi que se tratava de uma cantora gospel despejando toda sua emoção de louvor a deus. E era emoção.

Eu conheço algumas músicas de louvor também. Esse abaixo é um samba, mas também é usada nos templos, como forma de oração. Falando o bom português, é um ponto, cantado nos terreiros de umbanda.

De autoria de Getúlio Marinho Amor e uma gravação excelente do Morengueira, a história fala sobre um homem que apareceu em uma roda de pernada que o pessoal fazia antigamente, e derrubou todo mundo.

Era meia noite
(Getúlio Marinho Amor)

Era meia noite quando o malvado chegou

Quando o malvado chegou
Todo mundo ajoelhou
Todos tremiam de medo
Meu Deus do céu que horror

Apanhei o meu pandeiro
Fui saindo de fininho
Quando vi que era o malvado
Que vinha lá no caminho

Ele vinha tão zangado
E não quis saber de nada
Deu as ordens a todo mundo
Acabou a batucada

domingo, 14 de março de 2021

O subúrbio está é bom

O subúrbio, periferia, comunidade, como queiram chamar, é o melhor lugar do mundo!

Voltei a morar aqui e já no primeiro dia estava no mercadinho do bairro, na fila do caixa, com uma distância de 2 metros, esperando a atendente terminar o atendimento de duas moças.

Enquanto ajeitavam suas sacolas, que teimavam em não enganchar nos dedos já ocupados por outras alças, elas riam e conversavam sobre algo que não ouvia, pela distância, e também porque não me interessa ouvir assunto alheio.

Até que uma delas fala uma frase que eu não captei o começo, mas ouvi o final: pomba gira.

Elas riram, terminaram de se ajeitar, e foram embora.

Foi tão natural a conversa delas, sem precisar falar baixinho, sem precisar olhar para os lados enquanto falava. Falaram como se tivessem falado a palavra "cadeira". E ninguém olhou para as moças de cara feia. Ninguém fez o sinal da cruz. Ninguém fez menção de se distanciar mais das moças por medo.

Em que outro lugar do mundo alguém falaria em uma entidade das religiões afro normalmente em um ambiente público?

O subúrbio, periferia, comunidade, como queiram chamar, é o melhor lugar do mundo!

E é possível sentir o calor humano nas ruas, mesmo em época de pandemia.

A periferia é movimento, energia, é vida.

Viva a periferia!

Já dizia Paulo da Portela:

Para que havemos de mentir?
O subúrbio está é bom
Venham ver, não é história
Se por ventura estou errado
Dou a mão à palmatória

segunda-feira, 1 de março de 2021

Candeia machista

Candeia era policial. E um dos brutos. Fazia cumprir a lei. Se não podia estar na rua sem documento, Candeia levava em cana.

Em uma das suas excursões, chegou em uma zona de meretrício. Todos correram. Menos uma senhora, que levou um tapa de Candeia pelo desaforo de não correr. Essa senhora lhe fez uma profecia de que ele iria cair.

Tempos depois ele leva um tiro e fica paraplégico.

A introdução foi só para incluir a palavra "profecia" no post, título de um dos seus sambas. E o título do post foi só para chamar atenção mesmo, confesso. Ainda sim, tem relação com o post.

A letra do samba A profecia, a princípio, é mais uma letra falando do quanto a mulher sofre com o término de um relacionamento.

Mas olhando com mais calma, percebe-se que na verdade é o homem quem sofre.

A profecia
(Candeia)

"Mais cedo ou mais tarde você vai voltar
Pedindo, implorando, para lhe perdoar."
Confesso que na hora sorri e zombei da sua profecia
Nos braços de Orfeu me perdi na orgia
Andei por aí, muitos sambas cantei
Só mais tarde me lembrei
Fiz do meu canto e o melhor dos meus versos, sua profecia
Mas o meu pranto correu quando nasceu o dia
Confesso que chorei pelas ruas da desilusão
Vagando com amor em meu coração
Pelas ruas da desilusão
Vagando com amor em meu coração

Dos amigos nem sequer me despedi
E a boemia deixa, resolvi
Guardei viola no saco e subi o morro pro nosso barraco
Bati na janela, chamei "Amorzinho,"
A vida é tão bela, então vamos viver.
Hoje é coisa rara alguém gostar tanto
Como gosto de você."
Assim falei
Meu amor abriu a porta
"Voltaste?"
"Voltei."

Tudo bem que no final o homem convence a mulher a aceitar seu regresso e ele para de sofrer, mas o que chama atenção é o começo da música:

"Mais cedo ou mais tarde você vai voltar
Pedindo, implorando, para lhe perdoar."

Num primeiro momento pode se pensar: 'Pronto... lá vem mais uma música do homem esculachando a mulher.'

Mas na verdade é a mulher falando para o homem.

E isso fica evidente na frase seguinte:

Confesso que na hora sorri e zombei da sua profecia

A música passa a ter um novo viés, uma nova perspectiva.

E antes que digam que o samba não tem nenhum artigo, e que poderia ser a mulher cantando isso para o homem, dizendo que ela guardou a viola no saco e subiu o morro pro barraco, eu já digo que tem razão.

Mas este post é meu, e eu interpretei como o homem cantando pra mulher.

O samba é uma beleza e a interpretação da Alcione deu mais vida ainda para a música.

Abaixo, uma das poucas (e nem por isso deixa de ser excelente) gravações.