quarta-feira, 20 de julho de 2011

Memória de um ladrilho

Aí vem um perdido. Droga, pisou em mim. "Tudo bem! Não foi nada. Nem doeu!" Como se ele me ouvisse.
Daqui a pouco vai começar o dia. Acho que hoje é segunda-feira, dia de movimento. Muito movimento. Odeio movimento. Odeio pessoas. E também os cachorros, crianças, pombos, sujeira, resto de comida, formigas, insetos em geral, calor, frio, vento. Odeio esses meus semelhantes que não se mexem. Ficam nessa impáfia, nessa inércia, esperando algo acontecer.

Ugrh! Droga. Não consigo me mexer. Tomara que alguém tope o dedão em mim pra eu sair daqui. É o meu sonho! E tomara que quebre uma unha.

Está amanhecendo.

Um velho para em cima de mim. Pra ajudar, tapando o sol. E eu com frio. O velho, sem se importar com o mundo que está logo ali, abaixo do seu nariz, espirra. Porque já não estava com o lenço a postos? O tempo de levar as mãos ao bolso de trás, abrir o botão, alcançar o lenço e retornar ao nariz é infinitamente maior do que um ranho leva pra sair do nariz e cair em mim.
Só espero que daqui a pouco alguém derrame uma água pra me limpar.

Conheço quase todos da cidade. Mas não conheço ninguém. Uma coisa que me deixa profundamente triste é exatamente isso: não conheço ninguém. Todos passam por mim conversando, mas nunca escuto o final das histórias. Ou o começo. Então eu misturo tudo e fico invento a vida de cada um.

Esse senhor que vem vindo, por exemplo. Todo raquítico, arcado, se tremendo, fedendo a limão, com uma bengala, não enxerga. Ele para aqui todo dia, senta o dia todo e fica vendendo cartão telefônico. Sei que ele é casado, que a mulher é dona de casa e que mora longe. Aí eu imagino que os filhos o abandonaram cedo, hoje são donos de grandes corporações e tem vergonha do pai.

Já é meio dia. Quente. Muito quente. Gente. Muita gente.

Essas duas meninas que vem vindo, ainda sem curvas, estudam no ensino médio, acham um tal de Rafael muito lindo e vivem mentindo para as suas respectivas mães. Elas devem mentir também a respeito desse Rafael. Devem também mentir uma pra outra sobre os planos que arquitetam em namorar esse rapaz. Não dou um ano pra essa amizade terminar.

Fim de tarde. Começa a esfriar. Um cobertor ninguém derruba.

Deus sabe o que faz em não me dar pernas e braços. Porque eu ia bater em muita gente, pra descontar minha raiva.

Já é madrugada. Até que enfim. Sem movimento.

Aí vem um perdido. Droga, pisou em mim.

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto de craque. Muito bem escrito, com ritmo, com ironia, com exatidão. Tu és fera. Parabéns!!!
fernando evangelista